Itamar Vieira Jr. emociona alunos do Prime em aula especial sobre Torto Arado

Já imaginou ter uma aula de literatura para o vestibular com a presença de Itamar Vieira Júnior, autor de Torto Arado, obra considerada um novo clássico da literatura brasileira e já cobrada em importantes provas do país?

Foi exatamente isso que viveram os alunos do Curso e Colégio Prime, em Londrina. Em uma aula exclusiva no Cine Teatro Villa Rica, o escritor participou de um debate com os professores Biti (literatura), Márcia Chiréia (Língua Portuguesa), Gabriel (Sociologia), Angélica (Geografia)  e Thiago Paes (História), respondendo perguntas sobre o livro. O resultado foi um encontro emocionante, que trouxe um resgate histórico e sociológico da história do Brasil por meio da narrativa de Torto Arado e de seus personagens.

A plateia também foi presenteada com um espetáculo de dança inspirado no universo do romance e com um resumo encenado da história, declamado com emoção pelo professor Biti. 

Em sua apresentação, o professor destacou a estrutura do livro a partir das três narradoras: Bibiana, que relembra a infância com a irmã Belonísia, o acidente com a faca que muda suas vidas e sua trajetória de estudos e luta por direitos dos trabalhadores rurais; Belonísia, que permanece no campo, ligada à terra, às tradições e à espiritualidade conduzida pelo pai, Zeca Chapéu Grande, oferecendo uma visão mais íntima e afetiva do território; e Donana, que surge trazendo a perspectiva ancestral, conectando passado e presente com memórias do tempo da escravidão, misturando realidade e elementos míticos para reforçar a importância da memória coletiva e da religiosidade afro-brasileira como formas de resistência.

 Torto Arado contado por Itamar Vieira Júnior

Antes do debate, Itamar Vieira Júnior leu um trecho de Torto Arado, criando uma atmosfera de expectativa para o que estava por vir. Em seguida, respondeu às perguntas dos professores do Curso e Colégio Prime, compartilhando bastidores da criação e temas centrais da obra.

De onde veio a ideia do livro?

Itamar contou que começou a escrever muito jovem, influenciado pelas aulas de literatura do ensino médio e pelo contato com clássicos do ciclo nordestino, como Vidas Secas, Terras do Sem Fim, O Quinze e Morte e Vida Severina. Animado por essas leituras, iniciou Torto Arado quando ainda estava na escola e chegou a escrever 80 páginas, mas abandonou por sentir que não tinha maturidade para a história.
Vinte anos depois, o destino o levou a trabalhar no campo como servidor do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Formado em Geografia, queria ser professor e chegou a lecionar por dois anos, mas a experiência no serviço público rural reacendeu a narrativa. “Vi um mundo tão dividido que merecia ser narrado. E aí veio o livro, com mais detalhes e profundidade”, disse.

Por que Encantada conta a história?

Segundo o autor, por ser um espírito, Encantada não tem começo nem fim, o que permite transitar entre presente e passado. Ela é ponte entre a trajetória das irmãs e a memória da escravidão, guardando histórias que já não estão nas lembranças das famílias, como a origem da faca. “É uma testemunha ativa”, resumiu.

O texto nasce pronto?

Itamar reforçou que “livro é coisa séria” e exige trabalho profundo das editoras. Contou que, antes de ter editora, pediu a uma amiga revisora para ler e comentar. Descobriu então que o texto não nasce pronto: passa pela pré-escrita (quando a história se constrói na imaginação), pela escrita em si e, por fim, pela revisão, que vai muito além da simples correção ortográfica, é uma verdadeira reescrita.

 Sua intenção era que Torto Arado fosse acessível também a quem não teve oportunidade de estudar. “Cada autor tem sua maneira de pensar o texto. Para mim, eu queria que essa história encontrasse também aquelas pessoas que não tiveram oportunidade de estudar. Queria que fosse uma história que não encontrasse obstáculos”, completa.

 Embora a obra tenha identidade regional, ele lembra que pode ser lida em qualquer lugar do Brasil. As personagens femininas, disse, carregam traços de mulheres que conheceu ao longo da vida: “Depois os leitores comentam: ‘Parece minha mãe, parece minha avó’.”

As quatro gerações no livro e a história do Brasil

O romance se passa em uma comunidade quilombola, forma de organização surgida como reação à escravidão. As populações dos quilombos mantêm laços de solidariedade e hoje se organizam em mais de seis mil territórios no Brasil, alguns com milhares de famílias. O autor lembra que a abolição não resolveu os problemas da população negra, o que pode ser exemplificado pelo “sistema de moradas” narrado no livro, em que trabalhadores viviam na terra em troca de trabalho gratuito.
Personagens como Zeca Chapéu Grande, Bibiana, Belonísia e Inácio expressam diferentes formas de resistência e liderança, inspiradas por figuras reais que ele conheceu. Para Itamar, muitas pautas atuais, como cotas raciais e direitos trabalhistas, ainda são parte da “lei da abolição em curso”.

Opressões de gênero e raça

Ele reconhece que o Brasil é um país patriarcal, mas lembra ter encontrado muitas mulheres líderes no campo. Sua literatura busca representar tanto mulheres vítimas de um sistema opressor quanto aquelas que resistem e reagem a ele.

Direito ao território

Para Itamar, esse é um tema central da trilogia formada por Torto Arado, Salvar o Fogo e o próximo livro que ainda não foi lançado. “Meu primeiro contato com essa questão foi  pela minha história familiar, pois a família do meu pai era formada por trabalhadores sem terra, que viviam mudando de lugar. Eu ouvia essas histórias desde cedo. Com o tempo, ficou mais claro para mim que ficar em um lugar não é só questão de ter terra, ou de poder comprar, mas algo muito mais profundo. Torto Arado faz parte de uma trilogia que coloca a terra - o lugar onde vivemos - como um direito fundamental de todo ser humano”, destaca.

Lembra, entretanto, que esse direito é negado a muitos, como às comunidades indígenas e quilombolas. “Muita gente no mundo vive sob constante risco de despejo, de perder o território onde nasceu. É o que vemos, por exemplo, em Gaza, nas disputas entre Rússia e Ucrânia. Não existe vida humana sem direito ao território, mas isso tem sido negado . Para mim, pisar no chão onde a gente vive é tão importante quanto a própria vida.

Conflitos agrários e meio ambiente

 Òtimista por natureza, Itamar observa que mudanças positivas têm acontecido, mas as estruturas que enfrentamos são seculares, enraizadas e difíceis de transformar. Um exemplo recente, segundo ele, é o debate em torno do PL do Licenciamento Ambiental, que pode fragilizar ainda mais a proteção de territórios. 

“A luta pelo meio ambiente está profundamente ligada à luta pela terra. Muitas das reservas e áreas de preservação foram criadas dentro ou próximas de comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas. Essas populações historicamente protegem a natureza, mas hoje estão entre as mais ameaçadas pelo avanço das fronteiras agrícolas. Todo ser humano tem direito à terra, e quem é privado desse direito vê sua sobrevivência e cultura cada vez mais em risco”, pontua.

Jarê e religiosidade

 Itamar explicou que o Jarê é uma crença religiosa típica da Chapada Diamantina, nascida do encontro de tradições africanas, católicas e indígenas no século 19, durante o ciclo do diamante. É uma forma de cura e espiritualidade que ajudava trabalhadores do garimpo a lidar com as durezas e frustrações do ofício.

A faca como alegoria

 

A faca aparece no acidente que liga as irmãs de forma simbiótica, mas também reaparece em diferentes momentos, carregando significados que o próprio autor diz ter percebido melhor ao interpretar a obra depois. Sobre o corte na língua como metáfora da opressão, afirma: “O autor não sabe tudo sobre o que escreveu. Um livro sozinho não faz literatura: é o leitor, o professor, o crítico que a completa.”